As organizações de africanos e seus descendentes durante a escravidão e o pós-Abolição

Por Júlio César da Rosa
Imagem: Imagem: pt.wikipedia.org

As irmandades leigas, segundo bibliografia especializada, são “originárias das antigas corporações de ofício medievais, sejam na metrópole, África ou Brasil, as Irmandades e Ordens Terceiras disseminaram-se pelos vastos territórios do Império Português” (SIMÃO, 2008, p. 24). Segundo esta mesma tradição historiográfica, a primeira dessas confrarias, denominada Irmandade do Rosário surgiu no Brasil em Recife, no ano de 1552 e, no intervalo de seis anos, aparecia sua coirmã em Olinda. Será “entre os anos de 1750 e 1850, em que estas associações religiosas viveram seu grande apogeu; encontramos distribuídas pelo país, mais de uma centena de irmandades de cativos, forros e livres, fossem eles negros, mulatos ou pardos” (MULLER, 2013, p. 27).
Estas são umas das formas de organização coletiva das populações de origem africana e de seus descendentes. Os seus objetivos eram proporcionar auxílio para seus associados como a compra de alforria; proporcionar um funeral para uma boa morte; ajuda em momentos de enfermidade, bem como ser inserido na cultura letrada; e, festejar a vida, em suas elaboradas manifestações externas da fé. 
Não só essas irmandades, mas os terreiros também se constituíram como forma de resistência à cristianização imposta pelos portugueses, pois, tanto as irmandades como os terreiros tiveram um papel importante na transmissão, preservação e ressignificação da cultura africana e na luta pela liberdade e dignidade através da religião como elemento de resistência. A catolização para o africano escravo era uma forma de não ser mais visto como um animal, um ser “pagão” e sem alma. A estratégia de cultuar os santos da religião católica foi uma forma camuflada de cultuar os seus deuses e crenças e preservar suas tradições.
Estes são aspectos da história de africanos e seus descendentes que foram esquecidos por muito tempo, e quando foram analisados pela historiografia foram entendidos como expressões culturais de menor valor e, portanto, não mereciam ser estudadas. Por muito tempo homens e mulheres de origem africana, foram invisibilizados por uma dada bibliografia, que muito registrou sobre a escravidão no Brasil, e com o fim deste período, os mesmos foram apagados da História, haja vista que as elites nacionais, e boa parte dos intelectuais que a compunham, estavam preocupados em dar o crédito de desenvolvimento ao país, a partir da entrada dos imigrantes europeus no Brasil. 
Principalmente Estados que receberam um grande fluxo migratório como São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Nestas regiões as expressões culturais, os territórios negros, ou seja, a influência africana na formação dessas regiões houve a tentativa de silenciar de diversas formas, a presença física dessas pessoas, e sua contribuição para a formação cultural, econômica e política do Brasil. Dito isto, não é novidade que a população de origem africana, se organizou de diversas maneiras para sobreviver à escravidão, ao racismo, ao preconceito e à exclusão social. 
Não cabe aqui destacar todas, mas gostaria de evidenciar duas dessas formas organizativas, que surgiram do século XIX, e sobreviveram ao século XX, e ainda resistem no século XXI, como símbolos de resistência ao racismo estrutural e institucional que marca a sociedade brasileira. De maneira bem resumida destacamos as Irmandades Negras, templos para expressão da fé, de africanos livres, libertos e em cativeiro, porque os mesmos eram impedidos de frequentar a igreja dos “brancos”.
Com o fim da escravidão e a assinatura de Lei Aurea, em 13 de maio de 1888, e o advento da República em 15 de novembro de 1889, os novos tempos marcavam que todos eram iguais perante Lei. 
Infelizmente, entre a Constituição de 1889 afirmar que todos eram iguais perante lei, era de suma importância, mas havia uma distância abissal entre o que o documento afirmava e a materialização dos seus dispositivos constitucionais. Não bastava somente esta afirmativa, era preciso política pública que incluísse a grande massa de ex-cativos e seus descendentes a ter acesso a bens materiais e culturais. E a nascente República ao invés de incluir, excluiu, primeiramente ao incentivar uma grande leva de imigrantes europeus possibilitando o acesso a tudo que era negado para estes homens e mulheres de origem africana, como trabalho, educação, moradia, ou seja, a dignidade e a tão sonhada cidadania. 
Como diz a música da banda brasileira Titãs, “a gente não quer só comida; a gente quer comida, diversão e arte; a gente não quer só comida, a gente quer saída, para qualquer parte”. E após quase 400 anos em regime de escravidão, estes novos cidadãos passarão a exercer os seus direitos, inclusive de poder ser reunir em seus espaços próprios, além das irmandades que sobreviveram aos ataques das reformas higienistas e urbanas, agora com o advento da República, uma nova forma de resistência, sociabilidade e ascensão social surge entre as populações de origem africana, o que a historiografia e as ciências sociais chamam de Clubes Negros. Estes serão os novos espaços africanos da diáspora; darão continuidade ou iniciarão novos projetos individuais e coletivos. 
Surgiram no período pós-emancipação, clubes ou sociedades recreativas e beneficentes construídas pelos afro-brasileiros. Estas sociedades recreativas e beneficentes surgem em alguns Estados como Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro; umas construídas no ano em que se encerra a escravidão como a Sociedade Recreativa 13 de Maio, no Paraná; Sociedade Recreativa União Operária, em Laguna no ano de 1903; Sociedade Recreativa União Operária, em Criciúma 1934; e outras nas décadas de 1950 como o 1º de Maio do município de Tubarão, também em Santa Catarina e, ainda, neste mesmo ano, o Clube Renascença, na cidade do Rio de Janeiro, RJ.
A construção desses clubes ou sociedades também pode ser vista como forma de resistir à exclusão dos espaços de outros grupos sociais. Em Santa Catarina, os afro-brasileiros também tiveram estas experiências com, por exemplo, Clubes Sociais ou Sociedades Recreativas em Florianópolis, Criciúma, Lages, Laguna, Itajaí, Tijucas, entre outras cidades do Estado; algumas ainda em atividades e outras que não existem mais. A construção desses espaços não só revela que o Brasil é um país racista, mas, sim, evidencia que mesmo sendo excluídas de diversas formas na sociedade brasileira, as populações de origem africana sempre resistiram a todas as formas de exclusão. 
A luta por igualdade sempre existiu e ainda persiste; elas iniciaram por ações individuais, revoluções coletivas, insurreições, jornais de cunho político ideológico, como O Alvorada de Pelotas e O Exemplo em Porto Alegre, ambos, jornais de imprensa negra no Estado do Rio Grande do Sul. A própria construção desses espaços de lazer, a valorização e preservação da Cultura Africana com suas ressignificações, como o sincretismo afro-católico, até chegarmos aos Movimentos Negros atuais são expressões da resistência africana e afro-brasileira, que não se deu somente por meio da força, ainda que, muita fosse necessária, para própria defesa e sobrevivência.
Neste sentido entender-se-á que a resistência pode se dar de diversas formas e em vários níveis, e a luta dos afro-brasileiros, há anos, é travada no âmbito político, cultural e social em busca de direitos iguais e cidadania, respeito e dignidade.


Júlio César da Rosa
Doutorando em História na Universidade do Vale do Rio dos Sinos- (UNISINOS/RS). Mestre em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC (2011). Possui graduação em Bacharelado e Licenciatura em História pela Universidade do Extremo Sul Catarinense-UNESC (2006). Professor titular na rede estadual de Santa Catarina e municipal de Criciúma.

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