Neruda e o gato

Edição nº. 1 * Abril de 2020

foto de @laia

ODE AO GATO

Os animais foram
imperfeitos,
largos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, voo.
O gato,
só o gato
surgiu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
caminha sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser apenas gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do presságio à ratazana viva
da noite até seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma só coisa
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de uma nau.
Seus olhos amarelos
deixaram só uma
fenda
para jogar as moedas da noite.

Ó pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no chão,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Ó fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
sumido veludo,
seguramente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
o mundo todo te sabe e pertences
ao habitante menos misterioso,
talvez todos o creiam,
todos se acreditam donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com seus extravios,
o vezes e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
seus olhos têm números de ouro.


Marcus Fabiano Gonçalves
Nasceu em 1973; é gaúcho e mora no Rio de Janeiro, onde é professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito na Universidade Federal Fluminense - UFF. Poeta e pesquisador da área de Antropologia Jurídica, em 2019 publicou Bruno Palma, escolhedor de palavras – ensaio sobra a arte e o ofício de um tradutor (ECA-USP). Também divulga, ensaios e poemas inéditos em seu blog: marcusfabiano.wordpress.com

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